Em algum lugar da Bahia, escondia-se a
discreta cidade de Itaxoxota do Norte. Povoada por dois mil habitantes,
Itaxoxota era muito conhecida pela religiosidade de seus cidadãos. Dona Creuza,
beata, carola, líder da Liga das Senhoras Distintíssimas de Itaxoxota era uma
senhora de 70 anos, com muita fé, paz de espírito, amor no coração, e
assassinatos em seu passado.
Creuza era viúva.
Creuza não tinha filhos. Creuza era mulher direita. Creuza tinha sido uma
criança feliz.
Lá no sertão
do Ceará, lá longe, tinha nascido aquela menina. Bonitinha, meiga, cabeça
grande. Era Creuza. Creuza queria ler e escrever. Seus pais não queriam que
Creuza fosse uma sertaneja sofrida como eles, que assinavam com o polegar.
Queriam que Creuza fosse médica, “adevogada”, professora, alguma dessas
profissões que dão dinheiro.
Aos nove anos, certa vez, Creuza estava na cidade
com maínha mais paínho, quando surgiu por todos os lados um bando de
cangaceiros violentos.
-
Miniiiiina! – gritou maínha, quando viu a filha correr ao som dos primeiros
tiros. Creuza vira um menino, talvez mais novo que ela, cair no chão com um
tiro na testa e se escondeu.
Ouviu tiros,
tiros e mais tiros. Não acabavam mais. Gritos agudos, gritos graves. Gemidos,
gargalhadas. Súplicas. Para ela, fora setenta horas ou mais, mas para aquela
vila, não foi mais do que três horas até que todos estivessem mortos e todas as
casas e comércios fossem saqueados.
Creuza
depois de tudo saiu de seu esconderijo, semi enterrada sob um assoalho da
igreja, entre a terra e a madeira. Andava entre mortos de todas as idades.
Tomaram água, e derrubaram na terra seca também. Beberam vinho e água ardente,
levaram o que podiam, e boa parte do que não consumiram fora desperdiçada em
vandalismo.
Creuza ficou
três semanas naquela vila fantasma, uma criança louca no meio de corpos que
apodreciam, sentindo fome e cede, até que encontrou um jovem, que chegara cavalgando
um jegue, e que após inspecionar tudo, a encontrou naquele mesmo esconderijo. Arisca
e temerosa.
Era um menino
do Pernambuco. De 14 anos, armado até os dentes. Tião Carcará é como ele viria
a ser conhecido anos mais tarde. Naquela época em que ele encontrou Creuza, uma
cearensezinha delicada, suja e triste, ele era apenas Bastião.
Bastião
levou a menina consigo, e por anos estiveram juntos. Ele deu o primeiro carinho
que o rosto dela recebeu, o primeiro selinho, e o primeiro beijo de língua. Foi
o primeiro menino que segurou a mão dela. Foi a única carne que ela sentiu
entre suas pernas, fora o filho que tivera dele, nascido meses depois de seu
assasinato. Mas isso vem a seguir.
Bastião
tinha perdido seus pais numa pendenga com o cangaceiro Foice Branca, terror da
Bahia em sua época, e cresceu treinando tiros e matando bandidos. Era o herói
dos fracos e oprimidos. Fora Foice Branca quem matou seus pais, e fora ele
também o responsável pela chacina que vitimara os pais de Creuza.
Creuza e
ele, para combater, começaram a aliar forças com outros jovens que desejavam
vingança, mas a verdade é que, pouco a pouco, começaram a perder-se de sua
verdadeira missão e, após matar Foice Branca, assumiram seu reino de horror no
nordeste, e ele fora assassinado por uma jovem rapariga que tivera os pais
mortos pelas mãos dele.
Sim, meus
caros, falamos de Dona Satanilda. Dona Creuza está em Itaxoxota porque desejara
vingar-se, e Satanilda, mulher empreendedora que é, foca-se no trabalho, e não
tem idéia do que é armado contra ela. Seu Inácio, dono da barraca de côco da
praça principal conhece a história, e o padre, no confessionário disse que ela
e seu finado esposo perderam-se pela cobiça, e ele atraiu para si o destino de
seu algoz, e ela jamais descansaria se isso fosse consumado.
Isso a
atormentava. Ela largou o filho nas mãos de outra cangaceira sobrevivente, que
refugiara-se no sudeste. Nunca mais teve notícias dele.
Ela não
sabia se Satanilda tinha ou não feito pacto com o diabo, mas sabia que uma coisa não era
uma lenda: Marinilda de Souza Cavalcante Mendonça de Silva e Carvalho matara um
a um do bando de Tião Carcará. Foram quarenta e oito mortos. Não quis ser
cangaceira nem ser assassina. Consumou a vingança que prometera a si mesma e
seguiu sua vida.
Creuza por
sua vez vivia num dilema. Tornara-se uma assassina apenas por ser necessário
para estar ao lado do amor de sua vida. O que era apenas um desejo de vingança
por uma criança ferida por uma atrocidade, tornara-se uma mera trivialidade.
Na religião
ela encontrou ética e rigor. Na sua fé ela encontrou regras a serem seguidas e
obedecidas. Uma opinião sobre certo e errado além do que sua vida, regada de
sangue, havia lhe mostrado. Tinha um passado obscuro, tinha desejos tenebrosos,
mas sua fé definitivamente, não era falsa.
2 comentários:
Pois é, nem a fé de um assassino pode ser questionada, pois a fé não costuma falhar.
P.S.: Senti falta da trilha.
EU também senti falta. Ja providenciei
Postar um comentário