Naquela manhã Gilmar tomara café no
quintal, cuidando das galinhas, sem falar com ninguém. Naquela manhã, Hortência
não sentara na mesa para tomar café. Andava com a caneca de um lado para o
outro. Naquela manhã dona Lira servia as crianças na mesa, inquieta e
pensativa. Naquela manhã tia Rute não tomara café.
Não que não tivesse fome. Tia Rute estava
incomodada. Alguma coisa estava dando errada. Ela olhava pra Hortência, que
parecia ter acordado angustiada por alguma notícia triste. Não tinha nunca
reparado se tinha afeição pelo menino adotado. Poderia ser um pesadelo. E tinha
aquele Gilmar, que parecia cuidar de sua própria vida. E tinha também sua
própria inquietação. Ela saiu da casa devagar.
Gilmar percebeu a velha vindo com sua
habitual lentidão, e fez que não notou. Foi para mais distante, cortar lenha. Apoiara
tocos e mais tocos na árvore serrada de um metro.
Gilmar partia a lenha em machadadas
únicas. Partiu uma, duas, três. A velha chegou. Sentou-se no toco de uma árvore
serrada, como se o desafiasse. Ele cortou a letra passando o machado a
centímetros do corpo da senhora, que lhe olhava fixamente. Ela sorriu-lhe com
os lábios, apesar dos olhos inexpressivos.
- Você não parece bem, Gilmar.
- Não, tia Rute. Não estou bem. –
disse ele, com naturalidade.
- Algo que eu possa ajudar? – ela disse.
Seu sorriso permanecia inerte. Ele olhou para sua boca. Faltava-lhe muitos
dentes e os dentes eram já curtos e gastos pelos anos.
- Não sei. Talvez sim. Sabe, ando com
dores de cabeça. Sinto alguns enjôos as vezes.
- Veja pelo lado bom, se fosse
mulher, eu diria que era um problema de gravidez.
- Se fosse isso não seria um
problema. Crianças são bênçãos, não?
Os dois riram discreta e falsamente.
- É verdade. – ela disse simpática. –
Por isso que incentivamos e facilitamos adoções.
Gilmar apoiou o machado no ombro.
- Então porque não fui adotado?
- Acredite, rapaz, foi melhor pra você.
Permaneceram em silêncio, olhando
olhos nos olhos, sem expressão. O sorriso dela desaparecera, mas no lugar não
havia expressão de tensão, raiva, ou coisa parecida. Apenas uma expressão
vazia.
- Gilmar? Seja sincero. Em que
condições encontrou aquele garoto?
- Eu estava na carroça quando o vi
caindo do céu e o trouxe.
Ela permaneceu olhando para ele, até
que começou a rir. E aquele riso era sinistro, mas profundamente sincero.
Gilmar rira. Jamais rira com ela. Ela, por sua vez, não devia rir a muitos,
muitos anos.
Ela se levantou do toco, deu-lhe um
tapa no ombro.
- Termine aí, meu filho, e depois tome o café decentemente. – e virou-se
para a entrada que levava à cozinha. Dona Lira olhou para a cena sem entender.
Quando a velha chegou na cozinha, olhou para Lira. Ainda ria com alegria, mas
cessou o riso num momento rápido. – Esse menino não deveria estar mais aqui, Lira, e
agora é tarde demais.
1 comentários:
De onde teria vindo o menino? Que surpresas ainda é reservado para cada um do orfanato?
Aguardo o próximo capítulo. rs
Está boa a história, Alex.
Ora nos brinda com uma carga de suspense pesada, ora nos faz voltar aos níveis normais de adrenalina, "bóra lá", falta muito para sab/dom??? rs
Postar um comentário