Padre Onório entrou em seu quarto e
trancou a porta. Abriu seu armário, e retirou alguns livros, um a um,
jogando-os sobre sua cama. Uma bíblia comum, numa edição até um pouco recente,
seguida por uma Torá, Corão, um antigo testamento em latim e um grimório sem
capa que ele havia resgatado em uma missão quando esteve na Espanha.
Padre Onório era um homem do sudeste
do Brasil, mas desde novo demonstrara suas vocações eclesiásticas. Aos dezoito
já completava seu terceiro ano na Itália, e, já com a devida formação, o jovem
padre era enviado para trabalhos missionários em regiões remotas. Seu superior
o convidara para uma volta pelas ruelas de Lanciano, e ali ele olhara para os
olhos do jovem rapaz com um olhar perfurante como jamais ele recebera na vida,
e perguntou “Até que ponto acreditas no Senhor?”
O rapaz entendera a pergunta, mas não
foi fácil responder, pois havia certamente um questionamento mais espiritual do
que filosófico naquela pergunta.
“Isto depende das experiências que
tive. Sou grato pela minha vida, aprendi a crescer pelas dificuldades e
limitações, e isto tudo me tornou, acredito, mais forte do que já fui um dia.
Hoje, acredito com toda a minha determinação.
“Entretanto, sem saber a motivação de sua
pergunta, também poderia ser justo dizer que não acredito. Qual o intento?
- Sabe, meu filho, há mais cousas
entre o céu e a terra do que determina nossa pobre filosofia.
- Shakespeare?
- Shakespeare. Disseram isto antes dele, mas merece o crédito. – riu. – O que é que
Padre Aragonés costuma dizer sobre ele?
- Que ele é um homem que pensava. Que
pensar é perigoso...
- Exato, Onório, - disse o superior,
com seu sotaque grego. – Para alguns, na religião, o perigo é por desafiar a
Deus. Mas a meu ver, o perigo de se pensar é muito pior...
- O que seria, irmão Napadopoulos?
- Você cair na armadilha da tua
própria criatividade. A imaginação e o excesso de informações consumirem sua
lógica, e você pode se perder entre a realidade e a loucura. Descobrir algo que
não se é capaz de entender, meu filho, esse é o grande perigo. Expor-se a
possibilidades sobre Deus, nosso Senhor Jesus, e perder-se de si.
- E existe algum conhecimento que
possa causar isso?
- Há, - o padre respirou fundo. –
Muitos. Alguns que podem fazê-lo perder o respeito pela doutrina. No entanto,
estes mesmos podem aproximá-lo muito mais da figura de Cristo. Há muitos
dilemas complexos dos quais só se entende, ou não, na maturidade.
- Onde desejas chegar?
- Desejas ser tentado? Testado? Instigado?
- Contra Deus? – indagou o jovem
rapaz.
- Aí que o gato sai do saco, meu
rapaz. Pode-se interpretar como contra Deus, mas pode-se tambémr como uma
oportunidade de testar as certezas.
- Eu quero!
Quatro dias depois, o jovem viajava
para a Espanha. Alegrou-se por saber que estava em uma estrada do famoso
caminho de Santiago, perto de Portugal, embora desviaram depois de pouco mais
de 6 horas para uma vila, hoje inexistente, aonde havia pouco mais de cem
moradores. Ali ele era esperado em uma estalagem, aonde encontraria o Padre Alvarez.
Por dois dias ele esperou, ocioso,
pela vinda do padre. No amanhecer do terceiro dia, frustrado, começou a
investigar. Disseram que o padre havia partido fazia vinte e três dias para a
casa de um homem chamado Gonzalo Casamajor. Perguntou para quem pode, mas as
pessoas temiam falar sobre o lugar.
Uma mulher velha o surpreendera
quando comprava uma maçã, e lhe apontou uma estrada escura. “Casamajor...”. O
jovem a olhou sério, e olhou para o lugar. Sentiu medo pela primeira vez.
Seguiu em sua direção.
Era sobrenatural, era maligno. Ele
caminhava naquela estrada escura, fria, úmida, e sentia-se observado, não por
animais, ou pessoas, era como se fosse visto por cima. Estava vulnerável. Sabia
disto.
Deixou uma medalha grande de São
Bento pendurada no pescoço, e tirou do bolso a cruz estranha que havia ganhado
dias antes do padre Napadopoulos. De prata. Media quase vinte centímetros, e
abaixo dos pés de Jesus havia um crânio com dois ossos atrás dele formando um
X.
Havia uma casa pequena na frente. Ao
se aproximar vira uma mulher com o pescoço quebrado, caída no chão. Estava
diante da porta. A cabeça estava completamente virada para trás. Havia dois
olhos em suas mãos.
Onório, aterrorizado, passou por cima
dela, e entrou na casa. Um cheiro de podre insuportável. Viu próximo à porta um
homem deitado. Um camponês. Tinha os olhos arrancados das órbitas. As mãos
estavam sujas de sangue, e havia uma faca em seu peito. Quem a havia cravado
fora uma terceira pessoa, um homem alto, moreno, de meia idade, que vestia uma
batina. O rapaz ficara aterrorizado. Ouviu um gemido vindo da direção de onde
estava o padre, mas o padre estava realmente morto. Era outra pessoa quem
gemia.
No meio de uma sala estava um menino
com os membros virados ao contrário. Os olhos brancos, com pálpebras vibrantes.
Tinha seis anos. Estava de quatro, como uma aranha, e a cabeça pendurada como
se não tivesse ossos no pescoço. Aquela boca arreganhada que agonizava, e fazia
sons de gemidos que pareciam de prazer.
“Me mate”, ele pensou dentro de sua
cabeça. Arrancou o punhal do peito do camponês e foi em direção a criança, que
levantou a cabeça de forma grotesca e disse.
“Liberate tutemae ex inferis”.
Ele arrepiou todo o corpo. Sentia seu
coração pulsando em todo o seu corpo no meio do pânico. Quando preparou-se para
a grande apunhalada, aquela criatura disse, entre gemidos inexpressivos.
“Não é o diabo. É o seu pai”.
- Meu pai era um homem bom.
- Mas o outro não. O outro pede mais
sacrifícios que eu. – e começou a rir de forma bizarra. – matam mais pelo seu
pai que pelo diabo.
Ele não conseguia rezar. Ergueu a
cruz de prata. Era incompreensível se causava algum efeito na criatura. Não
sabia nenhuma oração. Não se lembrava sequer do pai nosso.
Como se uma nuvem inesperada cobrisse
o sol, uma escuridão tomou o lugar. A criatura se moveu em sua direção, sem
sair do lugar.
- Não pode me matar. Pode matar a
criança. Estará sacrificando ela pra mim. Ou para seu pai. O que não vem pra
mim vai pra ele. – e riu.
O rapaz chorou de ódio. Apertou a
faca em sua mão.
- Em nome de Jesus Cristo. – fez
sinal da cruz. – Em nome do Espírito Santo.
A criatura ria asmática, ao passo que
os gemidos pareciam vir da criança.
- Em nome de Javé, o pagão! – riu a
criatura.
O Padre correu e apunhalou o corpo da
criança no coração. Quando a lamina perfurou o coração, os olhos castanhos
surgiram e o encararam cheios de ódio.
“Tolo”. E caiu no chão.
Ao lado do padre havia um livro. Ele
o recolheu e saiu da casa, sem qualquer fôlego, sem qualquer disposição. Como
se estivesse à dias sem beber água, como se estivesse a dias sem comer. Como um
homem que não dorme à semanas, como um pobre coitado que carrega o mundo nas
costas. Voltou para a vila.
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