Na enfermaria, dois olhos se abriram.
O menino vindo do céu sentou-se. Parecia inconsciente. Não. Havia consciência.
Surgia pouco a pouco. Havia dor naqueles olhos. Ele respirou fundo. Lembrava-se
de algo vago. Havia escuridão profunda. Havia rancor, e havia tristeza. Uma
nuvem de mágoas que flutuava entre paredes de madeira, e ali dentro o que fora
uma pessoa séculos antes.
Sua aparência era o acumulo do que
sentia. Seus olhos traziam a mais profunda dor, a mais incompreensível solidão.
Não tinha pele, era apenas uma superfície lisa, escura, sem qualquer semelhança
com algo vivo. Não havia brilho em na superfície de seu corpo. Era opaco, e
aquele rosto, quase uma fumaça homogênea portadora de um semblante triste. Não
havia olhos, no entanto, havia aquelas duas fendas. Dentro delas havia uma luz
fraca. Um orifício deformado por onde se ouvia um gemido triste, um lamento
interminável. O menino entrara naquele mesmo ambiente.
A criatura encolheu-se, como se
tentasse esconder-se dentro de si mesma. A presença do garoto lhe causava dor.
O menino sentiu-se triste ao notar isso. Mas precisava fazer algo.
- Quem é você?
A criatura ficou encolhida, fazendo
um som que lembrava um choro. Não um choro real, mas aquele forçado, em que o
coração quer transbordar, mas o corpo não deixa. O menino tentou se aproximar,
mas o espírito urrou. Não queria ser perturbado.
- Não tenha medo de mim.
O espírito não o temia. Apenas sentia
raiva. Uma raiva fecunda, vinda da menor partícula de sua existência. Queria ficar
sozinho. Queria ser deixado em paz dentro de seu próprio ressentimento, dentro
de sua tristeza.
- Eu vim buscar você.
O espírito gemeu, mas era um gemido
de raiva, era um ódio triste. Ele se virou para o menino, e o encarou. O menino
viu aquele semblante vazio. A humanidade fora esquecida pouco a pouco naquela
criatura. Como as rugas que registram os risos ou amarguras no humano, aquele
espírito fora assimilando pouco a pouco as feições do que sentia, e eram apenas
elas que lhe registravam a face.
Era a tristeza e o ódio personificados.
Ele arreganhou aquela boca disforme e gritou. Ficou gigante. E gritava, como se
o teto fosse intangível. O menino o olhava, mas sem intimidação. Sentira um
desejo irresistível de chorar.
Ali, naquele colchão, ele lembrara
disso. E esta mesma tristeza lhe abatia.
“Não desta vez...” pensou.
Ele olhou para a porta. Tia Rute
entrara no quarto e o olhava com surpresa.
0 comentários:
Postar um comentário