Em algum lugar no interior da
Bahia se escondia a discreta cidade de Itaxoxota do Norte. Povoada por dois mil
habitantes, Itaxoxota era conhecida por histórias de superação. Natalino
Ventura fora um sobrevivente: Tinha dois filhos que passavam o dia sozinhos no
sitio em que morava, e certa vez, em época de natal viajou até Itabuna para
trabalhar em um comércio.
Com a mesma falta de sorte que
lhe trouxera uma mulher que engravidara de gêmeos e desapareceu após seu nascimento,
Natalino esbarrou com Cristino Gomes, conhecido por Corisco, cangaceiro famoso
e perigoso que estava à paisana pelas bandas de Itabuna. Após uma discussão por
motivo fútil, Corisco lhe agrediu com violência.
Ninguém jamais soube que o homem que o
espancara e o deixara desacordado pela rua era o cangaceiro, a não ser este que
vos fala. O fato é, Natalino, com vinte e três anos, acordara sem se lembrar de
seu nome, seu lar, exceto lembrar-se que tinha alguém à sua espera.
Seus filhos cresceram, com
momentos ora de tristeza, ora raiva. Jamais saberiam o que tinha acontecido até
que quando completaram sessenta anos, Indaiara, a moça, agora senhora, por
quaisquer forças do destino o encontrara pedindo esmolas em uma praça de
Itabuna, com uma barba que passava a altura da cintura, cabelos longos, cinzas
e embaraçados, e uma marca de espancamento, como um carro amassado, no cocuruto
do velho.
Bastaram três dias para que ele
estivesse devidamente asseado, e arrumaram-lhe um trabalho. Um shopping de
Itaxoxota, que mais parecia uma pequena galeria, precisava de um velho barbudo
para representar o Papai Noel.
Lá estava Natalino. Um velho que
não calculava informações. Não assimilava o mundo. Uma alma infeliz, por
ansiava por reencontrar coisas que já tinha recuperado e não podia reconhecer.
Falava, pensava, mas era vazio. Sentia calor com a roupa vermelha, e a poltrona
do Papai Noel, embora parecesse bonita, era dura e desconfortável. E então uma
menina se sentou em seu colo.
Ele fez como o dono do Shopping
orientara, conversava com a menina, e dera-lhe um doce. Houve uma iluminação em
sua mente ao olhar tão próximo do rosto da menina.
“Minha filha...” pensou ele, como
quem faz a maior descoberta do mundo. Ele tinha duas crianças. As havia deixado
para trabalhar. Esta era a causa de sua angústia. O senso de responsabilidade
por seus filhos jamais havia desaparecido, e não lembrar que existiam tornara
todos os sessenta anos terrivelmente sufocantes.
Seu coração acelerou. Ele
precisava procurar, mas onde estariam.
- Qual o seu nome, meu filho? –
perguntou ele para outra criança.
- Enoque. – respondeu o menino.
Era o nome de seu filho. Enoque e
Indaiara. De repente tudo voltou à tona. Ele sabia quem era, de onde viera,
lembrou-se do diabo loiro que o agredira. Mas não se esquecera dos anos que se
passaram.
Sentou-se outra criança. Mas sua
aflição apenas se atenuava a cada segundo que passava.
“Meu Deus, aquela moça é minha
filha. Onde ela está?” ele pensou, lembrando-se do rosto da mulher Indaiara que
o havia resgatado das ruas de Itabuna.
Começou a sentir a boca seca.
- Eu passei de ano! – exclamou um
menino, orgulhoso. Olhou para o menino, simpático, tentando parecer calmo,
embora surgissem pequenas luzes em seus olhos que piscavam incessantes.
Esticou o braço esquerdo para
pegar um pirulito, e o doce caiu de sua mão que formigava. Ele abria e fechava,
aflito. A boca, mais seca a cada instante, e de repente ele gritou um breve
“Ah!”, e derrubou o menino no chão, e caiu em cima dele. Morto.
Um trovão cortou todo o som que
havia na cidade. Um raio havia partido a maior árvore da praça principal, que
ficava diante do shopping e da igreja. Também o som da árvore fora um estrondo
arrepiante.
E as crianças, que eram muitas
começaram a gritar. Umas choravam de medo, outras uivavam e apontavam para o
velho morto.
“Papai Noel morreu”, gritavam
elas.
E a chuva começou. Densa,
tornando a manhã ensolarada em uma noite surgida de modo inesperado. Pessoas
corriam pelo shopping e gritavam nas ruas que o Papai Noel havia morrido. Uma
hora depois, estavam Indaiara e Enoque ao lado de oficiais que retiravam o
corpo de Natalino.
Quando o corpo fora levado, todo
mundo soube que o nome do homem se chamava Natalino, e que ele era um milagre.
Pois não chovia em toda a região fazia quase seis meses. A chuva levou horas, e
toda a cidade saiu, sem guarda-chuvas, para senti-la, fria, abundante e
abençoada.
Indaiara e Enoque jamais souberam
que seu pai se lembrara deles antes da morte, e fora a dor de tê-los deixado
esperar tanto tempo, que lhe tomou a vida.