recomendo a leitura dos capítulos anteriores
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BOA LEITURA
Dona Lira olhara para o padre que caíra no chão numa morte rápida, com pouca agonia. O menino que Gilmar trouxera brilhava quando viram num instante, todavia, a luz se desprendia dele como partículas de poeira e apagava-se lentamente. Gilmar vira tudo da janela. Viera numa corrida intensa e de um salto estava dentro do quarto.
- Tu não brincavas quando disse que o garoto viera do céu, ao que parece. – murmurou a velha. - Mas agora isto faz pouca diferença.
- Faz sim! – retrucou dona Lira. – O casulo não deu certo. O Antigo não vai virar um só espírito com Laio para renascer homem após a morte. Fracassamos.
Tia Rute olhara para a sobrinha de forma indecifrável. Não conseguiu entender se aquilo era um lamento, um deboche, ou uma afirmação indiferente.
- Não vão mais fazer isto. – Gilmar disse, olhando para o menino, que estava aparentemente morto. – Acabou. Eu já sei de tudo, e as crianças foram embora.
A velha olhou para ele pacientemente, caminhou até o padre, abaixou-se em gemidos de cansaço, e arrancou a faca das costas do homem.
- Quem é você? Você é uma raspa insignificante de algo grande que planejamos. Só está vivo porque fora violado pela garota. Está vivo pela compaixão desta idiota – e direcionou-se a Dona Lira – e porque de fato, precisávamos da força de um homem. Mas não precisamos mais.
Laio, que estava sentado, olhou para Gilmar, com as pupilas dilatadas, dois olhos negros intensos que miravam-lhe sinistramente. Ergueu os braços, e os telhados voaram pelo céu negro, e a luz da lua encheu o ambiente. Gilmar fora erguido do chão, e lançado contra a parede que estava a menos de meio metro dele. Afastava-se vinte centímetros e batia-se novamente, e outra vez. E outra.
Gilmar tivera o vislumbre de algo terrível. O menino que ele havia encontrado, vindo dos céus, queimava num fogo vermelho sangue, e gritava. Era um grito agudo e desesperado, um grito de tortura. Essa mesma dor ele próprio sentia. Aquela coisa que interagia com a criança queimava-lhe de dentro para fora, e as pancadas a curta distancia eram com uma força insuportável. Sentia que comprometia seus ossos, órgãos. Era insuportável.
Tia Rute tinha um sorriso tranqüilo, não havia soberba ou maldade, mas um contentamento, como se tudo tivesse voltado ao curso correto. Dona Lira olhava nos olhos de Gilmar. O que ela poderia fazer para protegê-lo? Ela era uma mulher frágil, adoecida. Gilmar era espancado contra a parede e reconhecia a compaixão nos olhos dela. Ela sentiu isso, e quis chorar. Agarrou tia Rute, tomou à força sua faca, e golpeou Laio pelas costas.
Gilmar caiu no chão, e dona Lira fora lançada contra outra parede, com muito mais força que os golpes dados contra Gilmar. Ambos cuspiram bastante sangue.
O rapaz ergueu a cabeça, e olhou para Mikail, morto, e sentira-o queimar, e olhou para os olhos de tia Rute, furiosa, que aproximava-se de dona Lira com ódio na respiração ofegante. Laio, por sua vez, tinha no corpo as conseqüências do golpe, mas mantinha-se em pé. Aproximou-se de Gilmar com um olhar superior. Olhava para o homem derrotado, esparramado no chão, semi ajoelhado, sua respiração era ofegante, asmática. Seu corpo todo estava dolorido.
O rapaz olhou para a lua cheia no céu limpo acima deles, da lua, para seu braço. Desenrolou o pano e o braço subitamente iluminou a todos com aquela luz pálida. Laio dera um passo para traz e tropeçou. Gilmar agarrara-o pelo pescoço e apertou com toda a força que lhe restava.
Tia Rute voara em sua direção com a faca e o golpeara, mas atingira o braço de Gilmar e não lhe causara nenhum grande efeito. Ele a empurrou. Ela gritou furiosa e ferida.
Gilmar, ainda agarrado ao pescoço de Laio, percebera uma lágrima escorrer do olho direito do menino. Ouviu em sua cabeça sua voz, que lhe implorava. “Mate-me”. Uma força estrondosa lhe tomara e ele estourou o pescoço da criança. Soltou, e o corpo caiu mole, como se a cabeça e o tronco fossem meramente ligados por pele e um pouco de carne.
O rapaz agora se sentara para contemplar a imagem da desgraça. As mãos com sangue, doloridas. Mas a velha ria. Tia Rute olhava para ele com olhar de indiferença.
“Você não sabe com quem se meteu, rapaz.” E olhou para dona Lira.
- Chega... – gemeu Lira baixo.
- Quase pôs tudo a perder... – disse a tia à Lira. – Quase. Teremos que recomeçar. Ele vai te perdoar, mas terá que provar que é fiel e devota.
- Porque fazem isso? – Gilmar perguntou, frustrado – e em troca de quê isto tudo? Vocês são velhas, pobres...
A velha ficou muda, olhando para ele, pela primeira vez ela não soube o que dizer.
- Ele enriqueceu meu pai, meu irmão, salvou minha cunhada...
- São velhas e pobres...
- Cale-se. – disse tia Rute. Mas havia uma força estranha em sua voz.
Dona Lira tossia, e olhava para ela.
- Não entende, minha tia? Apenas virou uma rotina. Nem a senhora acredita no que diz.
- Cale-se. Traidora... – e seguiu resmungando, inconsciente, numa língua estranha.
Dona Lira olhara de forma estranha. De repente fora tomada por terror.
- Você fala a língua d’Ele?
O sorriso da velha se contorceu numa expressão medonha e dona Lira começara a tremer o corpo inteiro e a se sentir sufocada. Era a velha que fazia aquilo. A velha deu passos lentos e debilitados. Gilmar estava cansado, já parecia ter desistido. Dona Lira tossia, engasgava, e estava com a cabeça vermelha, sufocada, desesperada. Mas algo aconteceu.
Mikail estava em pé. Olhava para a velha.
“Homem não lhe pertence!” ele disse numa língua estranha. A velha bufou feito um gato furioso ou ameaçado e deu um passo para trás.
“O homem não lhe pertence”.
A velha encolheu os ombros. Do corpo da criança desprendia uma luz branca sinistra, e esta luz a perturbava. Seus olhos começaram a lacrimejar, arder. Ficaram vermelhos, quase como se estivessem prestes a sangrar, e o brilho do ódio e medo. Ela continuava a lhe mostrar os dentes como uma criatura selvagem acuada, rosnando, bufando.
“Deixe-a, parta”.
Ouviu-se um grito que não era da velha, mas do que quer que a havia dominado. Seus ombros encolheram-se, quebraram para dentro, assim como os braços, e os ossos, e todo o corpo que se quebrava e encolhia-se para um núcleo magnético que não se via. Seus olhos de agonia sumiram, esmagados entre os pedaços do crânio que parecia implodir-se num último instante.
Uma sombra imensa ergueu-se sobre aquele amontoado de tecido e sangue, e emitiu um último rosnado. Mikail batera o pé direito no chão uma vez, e a sombra desapareceu, como uma fumaça de incenso.
Um silêncio consolador os abateu. Mikail partira. A lua e as estrelas os iluminava. Gilmar estava bem. Sujo com seu próprio sangue, mas sem ferimentos. Olhou para o céu. Olhou para a cruz de estrelas e para uma estrela à leste, de onde viera o menino. Gilmar levantou-se e foi até dona Lira. Segurou-a nos braços. Ela ficou em silêncio olhando nos olhos dele.
- Eu nunca soube como mudar isto, meu filho. Me perdoe por não ter tentado.
- Hortência e eu cuidaremos dos outros.
- Me perdoe.
Ele sorriu. Aquele sorriso com duas covinhas. O coração dela bateu mais forte, e ela própria não pode conter o sorriso.
- Perdoar de que? Vamos? Eu a levarei nos braços.
- Não. Fique aqui mais um pouco. – disse ela, mirando aqueles olhos claros que brilhavam. Os dentes daquele sorriso. Sentia o cheiro dele. Sentia-se em casa. – Não vai demorar para que eu parta, e quero estar bem aqui, - e respirou profundamente - olhando para você.
- Nunca me contou como vim parar aqui.
A senhora sorriu.
- Acreditaria se eu dissesse que veio do céu?
Derramou uma lágrima por seu rosto. Gilmar a enxugou, e então sua cabeça pesou completamente, e seus olhos eram fixos em uma direção qualquer. Ele os fechou. Beijou-a no rosto e a manteve por alguns instantes com o rosto em seu peito.
Ergueu-a nos braços e a levou até o quarto em que as crianças dormiam. Deitou-a numa cama e a cobriu com um lençol branco. Voltou para a enfermaria e aproximou-se do padre. Pobre do padre, que os quis proteger, e não teve sucesso, pensou Gilmar. Mas apesar de tudo, o padre partira, e não haveria mais pergunta sem resposta. Não fora em vão. Mas isto somente o próprio padre haveria de saber. Gilmar o levou para o outro quarto, limpo, e fez com ele como fizera com dona Lira.
Laio era um inocente, como ele próprio. Gilmar dera um beijo na testa da criança. Colocou-o na cama, no outro quarto, próximo à dona Lira e o Padre. Fez uma oração simples.
Não tinha idéia do que pensariam as pessoas que vissem aquele lugar, mas sabia que deveria desaparecer, levando consigo Hortência e as outras crianças. Pegou alguns objetos de valor que havia na casa, jóias antigas, simples, mas com ouro e uma ou outra pedra das velhas, economias, e pôs numa bolsa. Por último, pegou um cobertor para cobrir os restos mortais de tia Rute.
Sob a luz da lua, Gilmar saiu do orfanato, pela primeira vez, para sempre.
Fim.